Quando falamos em população de rua, trata-se de um fenômeno social bastante heterogêneo que expressa a face mais cruel desse sistema socioeconômico excludente e desigual.
por Luiz Kohara e Maria Antonieta da Costa Vieira
Além dos efeitos catastróficos, a pandemia do coronavírus (Covid 19) trouxe à tona graves questões sociais vividas pela população pobre do país. Questões que não são novas e sobre as quais muito já se discutia a respeito da necessidade urgente de definição de políticas públicas para enfrentá-las e fazer valer os direitos definidos na Constituição Federal de 1988. Um exemplo é a situação vivida pela população em situação de rua, estimada em 101.846 pessoas no país, em 2016, segundo informações do IPEA. Apenas na cidade de São Paulo, o censo realizado em 2019 encontrou aproximadamente 25 mil pessoas em situação de rua
Entre as principais recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para prevenir e evitar a propagação da Covid-19 estão o isolamento das pessoas em suas casas, a não aglomeração e a constante higienização. O intrigante é como se “manter em casa” em tempos de coronavírus para aqueles que têm as ruas como moradia? Como respeitar regras de higiene, quando não há água disponível nem para beber? Como manter distância confiável de outras pessoas dormindo em centros de acolhida em que, por vezes, mais de 100 pessoas dividem o mesmo espaço? E, como fica a situação atual, sem os equipamentos de proteção?
Quem é a população de rua?
Quando falamos em população de rua, trata-se de um fenômeno social bastante heterogêneo que expressa a face mais cruel desse sistema socioeconômico excludente e desigual. São milhares de pessoas sós ou com familiares morando nas ruas, calçadas, praças, marquises, baixos de viadutos ou em outros locais, sem nenhuma proteção física adequada, sujeitas a riscos de assassinatos, doenças, agressões, discriminação e outras situações de violação da dignidade humana.As condições de vida da população em situação de rua levam à fragilização da saúde com doenças crônicas (hipertensão, diabete, asma, tuberculose, entre outras), além do grande número de idosos expostos, atualmente, aos riscos de morte de forma mais severa nas ruas.
Além dessas questões, trata-se de um segmento social marcado por preconceitos e estigmatizacão, tanto pela indiferença, desprezo e agressões por parte da sociedade em geral, como por agentes públicos, com ações repressivas e expulsões violentas dos espaços a pretexto da higienização, ações estas agravadas ainda mais quando dirigidas aos dependentes químicos.
Com as mudanças do mundo do trabalho, cada vez mais competitivo e exigente em relação à qualificação tecnológica, essas pessoas são consideradas descartáveis. E uma sociedade cada vez mais individualista, na qual o valor da vida está sustentado na capacidade econômica (ter) de cada indivíduo, esse grupo social tem sido visto como desprezível.
Dessa forma, o acesso ao trabalho e à renda restringe-se às oportunidades de realização de “bicos” que a rua oferece: coleta de material reciclável, vendas no farol, guarda de carros, etc., ou seja, um trabalho realizado em condições extremamente precárias, sem nenhuma estabilidade, que impossibilita o acesso e a manutenção da habitação.
Nos últimos anos, essa população tem crescido de forma exponencial, em um ritmo muito superior ao do crescimento das cidades brasileiras. Em São Paulo, dados dos censos realizados em 2015 e 2019 apontam para um crescimento de 60%.
Políticas públicas e moradia para a população em situação de rua
A pandemia trouxe muitas iniciativas de solidariedade humana a esse segmento social de diversos setores da sociedade e de vários municípios nesse contexto emergencial, mas é fundamental a presença do Estado na garantia efetiva dos direitos de todos os cidadãos no que se refere à saúde e à vida.O Decreto Presidencial n. 7053, de 23 de dezembro de 2009, que estabeleceu a Política Nacional para a População em Situação de Rua, foi um marco importante que reconheceu, no âmbito federal, a problemática desse segmento social em sua complexidade e estabeleceu serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda. São conhecidos os avanços e as ampliações de programas sociais para a população em situação de rua, em algumas áreas, advinda desse decreto. No entanto, essa população não é contemplada, até hoje, nos programas de habitação de interesse social, mesmo que se constitua no grupo social que vive a falta de moradia de forma absoluta.
A resposta do poder público à necessidade de moradia tem se restringido basicamente ao atendimento assistencial da rede de proteção social, por meio do abrigamento temporário em equipamentos coletivos que muitas vezes funcionam como depósitos de pessoas, que não conseguem ter a privacidade preservada; vale apontar que os serviços de abrigo coletivo atendem parte dessa população.
Na cidade de São Paulo, 48% das pessoas em situação de rua dormem em centros de acolhida, os demais pernoitam nas ruas. A manutenção da população de rua nesses locais reforça o entendimento de que esse segmento precisa ser tutelado através de programas assistenciais que respondam às necessidades imediatas para a reprodução da subsistência diária. Quando são usuários de droga ainda sofrem forte criminalização, que tem justificado ações de repressão e/ou internação compulsória. Do mesmo modo, o preconceito e a estigmatização da população em situação de rua fazem com que ela seja vista como incapaz de adquirir e manter uma moradia.
Historicamente, o acesso à moradia por meio de programas públicos sempre esteve vinculado à capacidade de pagamento do beneficiário, e não visto como uma necessidade fundamental para o bem-estar do ser humano, portanto, como um direito de todos os cidadãos brasileiros. Não é por acaso – sendo a moradia uma mercadoria valiosa –, que não se consiga avançar com programas habitacionais para a população em situação de rua.
Experiências internacionais têm evidenciado que o acesso à moradia deve ser o eixo principal articulador da política de atenção à população em situação de rua. No Brasil, algumas experiências pontuais vêm sendo desenvolvidas por organizações sociais, movimentos populares e governos municipais. Alguns estudos sobre essas experiências têm indicado que quando essa população acessa a moradia e tem aporte de programas sociais, a saída dessa situação é mais sustentável com efetiva inserção social, com melhorias no acesso ao trabalho, educação, saúde, com consequente reconstrução de vínculos familiares e sociais.
É necessário ressaltar que programas habitacionais dirigidos à população de rua requerem adequações que contemplem a situação de vulnerabilidade social desse grupo, o que inclui uma ação coordenada de serviços de outras áreas, como saúde, assistência e trabalho.
Há que se considerar também a diversidade de grupos que compõem a população em situação de rua. Se, por um lado, a condição de estar sem moradia a torna homogênea, por outro, esconde um conjunto diferenciado de grupos particulares que possuem características, necessidades, condições e perspectivas diferentes. Há idosos que não conseguirão mais entrar no mercado de trabalho, não possuem proteção previdenciária e que necessitam de uma moradia permanente. Há grupos de famílias com filhos que demandam cuidados e serviços específicos. Há pessoas com sofrimento mental que precisam de tratamento de saúde e moradias especiais. Há outros grupos como: dependentes químicos; com necessidades especiais como os deficientes; de mulheres sós e grupos com diversas orientações sexuais, como os que fazem parte dos grupos LGBT.
Cada um deles possui necessidades próprias que precisam ser contempladas na sua particularidade, seja em relação às possibilidades de trabalho ou à especificidade da habitação. Trata-se, portanto, de uma demanda complexa para as políticas públicas, que vem se somar à já extensa demanda de habitação popular para os grupos de baixa renda.
A atual pandemia que atinge a todos confere visibilidade a essa realidade e, mais do que isso, evidencia a necessidade da moradia como um direito essencial para proteção da vida, trazendo à tona a urgência e a gravidade da problemática da população de rua e a necessidade de políticas públicas que respondam a ela.
Que essa situação possa contribuir para a alteração do paradigma do atendimento, tornando a habitação o eixo da política para a população em situação de rua. Uma sociedade só será democrática e socialmente justa quando o direito à moradia digna for efetivamente aplicado a todas as camadas da população.
Luiz Kohara é Doutor em Arquitetura e Urbanismo e pesquisador da questões urbana, membro do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, assessor do CAIS e colaborador da Rede BrCidades.
Maria Antonieta da Costa Vieira é Doutora em ciências sociais pela Unicamp, membro da OAF, assessora de movimentos sociais ligadas à pop rua e pesquisadora do tema população em situação de rua e políticas públicas.
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